quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Diário de um evangelista - parte 04

FreePik

Depois de muita preparação, fomos para a festa de natal da comunidade que estamos evangelizando neste período – o Barroso. E entre sorrisos, a “Palavra” e doações, descobri que o ser humano, não de uma forma em geral, é mesmo muito interesseiro.

Nos preparamos cerca de duas semanas para este dia recolhendo brinquedos e montando os kits para meninos e meninas. E além disso, fizemos uma cota altamente democrática onde doaríamos alimentos ou cestas básicas ao nosso gosto. Mas, como um dos irmãos tinha feito uma pesquisa de cestas básicas, optamos em comprar em um único lugar conseguindo então cerca de 21 cestas.

No dia do evento, chegamos cerca de 15:00hrs na comunidade. Ao avistarem a nossa “tropa” as crianças corriam para as suas casas anunciando a nossa chegada. É de sobretudo gratificante ser recebido com abraços das crianças e o sorriso de alguns adultos. E antes que alguém veja neste ato interesse, mesmo em dias que não levamos nada – além da “Palavra”, somos assim recebidos. Uma prova de que o amor quando é compartilhado, gera mais amor.

O silêncio dos inocentes

Lucas Filho
Como de costume, tivemos a nossa peça teatral e reunidos ali sobre uma singela cobertura plástica, as crianças foram chegando e sentadas assistiam a peça com os olhos da inocência. Imagino, desejo, orarei, para que esta não seja a única peça teatral que eles assistam na vida. Quem sabe no futuro, posso vê-los no Teatro José de Alencar em camarotes vip, ou quem sabe, interpretando algum papel não tão duro como a vida deles é.

Fico a imaginar se o poder público pudesse chegar mais perto deles. Será que não há como retirar o lixo da frente de suas casas e ensiná-los a não mais sujar “a rua” que moram? Não há alguém que possa levar ações de cidadania, saúde infantil, meio ambiente, controle da natalidade, etc? Quem sabe no ano que vem, com a nova administração da prefeitura possamos ver isto.

O alimento do espírito

Lucas Filho
Após a apresentação teatral, o irmão Rodson (uma das pessoas mais incríveis que conheci nos últimos anos), proferiu uma reflexão sobre Deus e a vida. As crianças, ali já sentadas, entre palavras que não fazem parte do seu vocabulário (na Bíblia há muitas neste sentido), e palavras de esperança, fitavam os olhos ora para ele ora para o horizonte que começava a desenhar o por do sol. Talvez na busca de que o milagre da vida por nós tão falado, acontecesse ali naquele instante.

Embora a semente da “Palavra” estivesse sendo ali plantada no coração daquelas crianças, os adultos, se colocavam distantes, não longe do alcance da voz do irmão que pregava, mas em meio a muitas distrações, poucos eram os que acompanhavam aquele momento.

O ser humano é interesseiro?

Lucas Filho
Não entendo as pessoas. Estamos ali para ajudá-las. Para mostrar que a vida delas pode mudar e que Jesus Cristo é o agente transformador. Então qual o motivo de se afastar quando falamos sobre Deus e de se aproximar quando algo diferente acontece?

Ao terminar a “Palavra”, iniciamos a distribuição do lanche, as crianças calmamente sentadas, recebiam o sanduíche e um copo de refrigerante. Já alguns adultos – os que estavam mais distantes, se aproximaram a ponto de até mesmo receber o lanche antes que algumas crianças. Sei o quanto a fome pode ser cruel, mas não acredito piamente que era ocaso de todos que ali estavam.

Vendo o que acontecia no alto do morro, algumas crianças que moram nas redondezas também se aproximaram. Cada criança recebia uma pulseira para identificar a participação e estas novas também recebiam o lanche pois havia mais lanches que crianças identificadas. E este fato nos levou a uma outra situação. Alguns adultos também se dirigiam ao local do evento, o que começou a me deixar apreensivo.

Como o carro de apoio não consegue subir até as casas da comunidade, o mesmo ficava em uma rua próxima. Por várias vezes descemos e subimos levando os brinquedos, os alimentos e o mais pesado que eram as cestas básicas. Contamos com a ajuda de uma das moradoras que sempre nos recebe para deixar dentro de sua casa as cestas. E para não fazer “alarde”, levávamos as cestas dentro de nossas mochilas e deixávamos na casa de apoio dentro da comunidade. Foi desde então que o ser humano começa amostrar a sua mais terrível face: o descaramento.

Logo que as cestas começaram a ser deixadas na casa de apoio, uma das moradoras automaticamente se posicionou à porta da casa. Logo demonstrava de forma até me pereceu incisiva, que queria uma cesta. E quem não quer? Ali tem famílias que não sabemos como conseguem sobreviver, mas dai ser apenas ela a privilegiada é outra história.

O encerramento da ação e início da face deplorável do ser humano
Nem todas as cestas foram entregues apenas ao final do trabalho. Algumas famílias receberam durante o evento, estas, sabíamos que era moradores de lá. Já as demais, organizamos uma fila para cada casa receber a sua.

Assim como no milagre da multiplicação, tínhamos mais estas do que casas, então, as pessoas que por lá estavam receberam as cestas. Embora algumas ainda não tinham saído do carro pois eram cestas não completas.

Quando estava havendo a entrega das cestas, os brinquedos – que também sobraram, foram enviados novamente para o carro. E na chegada ao local do carro, moradores da rua onde se encontrava o carro de apoio, corriam ao encontro dos irmãos que tinham os brinquedos. E seguindo a ordem do nosso líder, estes brinquedos foram distribuídos. Até então nenhum problema com isto, afinal, quem não gosta de brinquedos não é? Mas eu vi a diferença das crianças que não moram na comunidade que atendemos. Bem vestidas – algumas até pareciam ir ou voltar de uma festinha, junto com os seus pais, pulavam pedindo um brinquedo.

Ao chegar no carro de apoio, fui cercado por outras crianças e foi neste momento que “a face deplorável do ser humano” começou a agir. Uma senhora – irmã de fé, que passava pelo local, se aproximou do carro e com uma Bíblia na mão pediu um brinquedo que segundo ela era para o seu neto. Dei então o brinquedo. Logo depois ela, olha e me pedi outro, agora para o seu sobrinho. Olhei para ela e disse que infelizmente não poderia fazer isto, pois haviam muitas crianças ali ao redor do carro e elas iriam receber. Atendi uma criança que pulava a minha frente e quando me voltei para o outro lado, eis que a “irmã de fé” ainda insistia. E novamente respondi que não seria possível. E ela mais uma vez disse que queria outro brinquedo e mais uma vez neguei. E como num “passe de mágica” ela sai sem ao menos agradecer o presente dado. Nem tão pouco perguntou se da outra vez gostaríamos de ajuda no evangelismo, simplesmente saiu.

E em outra visão da face humana, uma mãe traz consigo, praticamente arrastado, o seu filho que é especial – síndrome de down, ela pede o presente com a frase: “Quero um para o meu filho que é especial!”. Entretanto, neste momento, não havia mais brinquedos para meninos e só para meninas. Falei então para ela que só tinha brinquedos para meninos. E de uma maneira rude, ela então enfatiza que queria um brinquedo pois “o filho dela é especial.” Olhei em seus olhos e expliquei novamente que não havia mais brinquedos para meninos e se ela não se importava em receber uma de menina. Ela simplesmente repetiu a frase sobre o seu filho. Não me restava mais nada a não ser entregar o brinquedo. E como de costume – naquele momento, o “obrigado” não apareceu.

Outra moradora chegou e pediu um presente e informei que já haviam acabado. Subitamente ela levantou a lona que cobria as cestas que ainda estavam no carro e disse: “Agora é distribuição de cestas!” Respondi: “Sim, mas não para vocês, é para outras pessoas". Vi no seu olhar uma pincelada de raiva, nem ao menos uma frase do tipo: “Olha, estou precisando...” Se esta frase não foi proferida, então – acredito eu, que não era necessário para ela.

Percebi que teve pessoas que não moravam por lá e receberam uma cesta, talvez até uma mesma casa possa ter recebido mais de uma. Isto não importa, o alimento estava lá e de uma forma ou de outra não deixamos as famílias que eram o nosso foco sem receber. Mas penso na malícia de algumas pessoas em tirar vantagens de nossa compaixão. E conversando com minha esposa ela me chamou a atenção para algo: até parece que algumas pessoas estão por lá por merecer. E me disse uma frase quando escrevia este texto, que me pereceu até Deus a lembrando da frase que estava em sua agenda e fiz questão de escrevê-la aqui – parafraseando o dito:

“As vezes Deus não muda a nossa situação porque Ele tenta mudar o nosso coração.”


Então, na corrida desenfreada do “ter”, Deus nos coloca em situações onde o “ser” deveria falar mais alto. Me lembrei do irmão da comunidade no qual o citei no Diário de um evangelista - parte 03 (clique aqui para ler), que se voltou para Deus e aos poucos a sua vida está mudando.

E como Deus é perfeito em suas ações, umas das pessoas que estava por lá junto até mesmo com as crianças e esperou a sua vez para lanchar era justamente este irmão. Agraciado com uma cesta e uma camisa que era minha e que fiz questão de doar para ele para ser usada no dia de seu primeiro testemunho de como Deus mudou a sua vida.

A face deplorável do ser humano se mostra então calçada de tênis branco e vestida de short de cótton verde

Volto então para a comunidade e no caminho me encontro com um dos irmãos que trazia o restante do material usado na apresentação. Quando subitamente ouço uma voz por trás de mim perguntando: “Ainda tem cestas básicas?” Me virei o olhei a senhora que perguntava com uma voz doce e amável. Então “ a face” se revela. Calçada de tênis brancos novos, short verde, camisa branca e de boa aparência, a senhora possui um olhar entre altivo e sereno. De pronto, o irmão responde que as cestas são para as pessoas da comunidade. Ela então fala: “Mas eu moro ali do outro lado.” E respondemos: “Mas são para as pessoas que moram ali em cima.” A senhora então volta.

Deixamos o que sobrou no carro. E a pé nos colocamos a caminhar de volta para a igreja. Passando pela rua que fica alguns metros da comunidade – embaixo do morro, vi a senhora de tênis brancos montando a estrutura de um pula-pula. Imaginei quantas das crianças da comunidade já estiveram por lá brincando. Quem sabe um dia possamos fazer uma parceria com esta senhora, uma hora para as crianças da comunidade por cada quilo de alimento da cesta básica que ela por ventura recebesse.

Organizar para abençoar

Este é o segundo evento deste tipo que participo e notei uma falta de organização nas ações mais pontuais - crítica construtiva. No nosso próximo encontro, iremos discutir ações para melhorar a forma de como fazer estas ações. Talvez um cadastro de todos os moradores e crianças para que possamos atender as pessoas certas na quantidade certa. E fica então a lição de que, assim como o “culto racional” as ações para Deus também tem que ser pensadas em seus mínimos detalhes para que a obra do nosso Senhor seja completa.


Lucas Filho

2 comentários:

  1. nem sempre devemos julgar as pessoas só pela aparências devemos sempre prestar muita atenção nas pessoa por dentro e não por fora. Aquela senhora deveria estar bem vestida mas não significa que queria aproveitar das coisas, e talves ela teria suas razões quando foi pedir a sesta básica. Devemos procurar a conhecer as pessoa por dentro, por fora é só aparência.

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  2. Olá Guiomar,

    Agradeço a sua participação e concordo com você. Entretanto, cabe alguns comentários:
    A comunidade que visitamos fica sobre o antigo lixão da cidade de Fortaleza-CE. A poucos metros após o último barraco, há casas com toda a infraestrutura. Entretanto, os próprios moradores destas casas, mesmo sendo convidados para os eventos que fazemos por lá não comparecem. O motivo? Basta olhar no desdém que fazem quando descobrem que a peça teatral é de frente a um dos barracos.

    O que temos então na região são duas realidades distintas. Uma, a da comunidade, a outra os demais moradores.

    Quando estamos evangelizando - não sei se no seu caso é assim, Deus se manifesta de diversas formas, inclusive nos revelando coisas das pessoas que ali estão. Há uma sinergia envolvendo todas as nossas ações ali. Mas a intenção daquela mulher não seria diferente de outras que relatamos no texto. E ao julgar do sentimento que ambos (um outro irmão e eu) sentimos ao olhar para ela, isto já nos serviria.

    Você tem filhos? Quando estes estão com fome o que fazem? Pedem. E depois pedem novamente e se não se apressar muito pedem de novo e de novo e de novo... não é assim? Pois bem. Usando somente este critério, tivemos a impressão de que a pessoa não precisava efetivamente da cesta,pois se assim tivesse mesmo precisando,pediria, pediria e pediria. Poderia perguntar quando voltaríamos lá novamente. Poderia perguntar de que igreja éramos - já que nas nossas camisas não há o nome de nossa denominação pois fazemos par Deus não para igrejas.

    Se olhar as demais portagens do "Diário de um evangelista", verá as casas e a situação das as famílias que ali se encontram e é bem diferente daquela senhora citada no texto. Veja as casas - se é que podemos chamar assim e imagine que a mais ou menos 10 metros a casas com toda a infraestrutura ao redor.

    Não estou aqui julgando "a pessoa" em si, mas a atitude de muitas pessoas, assim como ela, que tem como obter o seu pão de cada dia, mas preferem - se aparecer a oportunidade, de levar vantagem.

    Que Deus lhe abençoe.

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